No que diz respeito a Nietzsche, a crítica à metafísica se deixa perceber através do conceito da “morte de Deus” e seus desdobramentos.
No aforismo 108 da Gaia Ciência,
Nietzsche nos adverte que os homens têm que não apenas saber que Deus está
morto, quer dizer, que o fim da maneira metafísica de pensar baseado na
oposição entre aparência e realidade, verdade e falsidade, bem e mal etc.,
sejam desconsiderados, tendo em vista que com o esfacelamento da racionalidade
medieval e com a ascensão da racionalidade científica moderna, temos como
consequência a ausência de um fundamento ou horizonte organizador de nossa
cultura, gerando um total esvaziamento dos valores que até então vigoravam no
seio do pensamento. Também, vencer a sombra dessa morte que é o ponto máximo do
niilismo ativo, sem o qual não poderia ocorrer a “transvaloração de todos os
valores”, quer dizer, sem a morte de Deus, a ideia de uma instância
transcendente e ideal continuará agindo em nossa forma de pensar, levando-nos a
nos submeter, ao criar valores, a essa “sombra da morte de Deus”, ou seja, a
essa esfera ilusória.
No aforismo 109 da Gaia Ciência,
Nietzsche critica o caráter antropomórfico do conhecimento no que se refere à
interpretação moral do mundo a partir da racionalidade filosófica ocidental,
que compreendia o mundo ora como uma máquina (Descartes), ora como um ser vivo
(Romantismo), ora como Autoconservação (Espinosa) etc., tendo em vista que tais
abordagens levam a uma limitação através da antropomorfização, gerando
dogmatismos no conhecimento. A nova tarefa segundo Nietzsche seria livrar os
seres humanos de um conhecimento puramente ideal e dogmático e convidar a
filosofia a se desvencilhar completamente da sombra da morte de Deus
“Desdivinizando a natureza” e “Começar a naturalizar os seres humanos”.
Todavia, ele nos adverte para não haver um dogmatismo com relação ao conceito
de natureza, para não cair num círculo vicioso, e antropomorfiza-la novamente;
e para isso quando ele escreveu: “De nova maneira descoberta e redimida” mostra
muito bem a abertura para novas possibilidades no conhecimento, para encontrar
a partir de sua naturalização um outro ponto de vista para redimir o Homem do
peso de toda tradição filosófica ocidental que acreditava em um conhecimento
objetivo, ou seja, que a verdade poderia ser descoberta e não criada, como
também em um único princípio.
No aforismo 110 da Gaia Ciência,
Nietzsche mostra que para a conservação da espécie foi necessário que houvesse
entre os homens convenções, sem as quais a vida teria se tornado muito mais
difícil, ou até mesmo impossível. A verdade, não é procurada sendo um bem em
si, mas, pelo que há de vantajosa para a conservação da espécie, neste sentido,
a verdade seria uma “ficção útil”; para tal, foi preciso acreditar “que existem
coisas iguais”, “que o nosso querer é livre”, etc.
No aforismo 111 da Gaia Ciência,
Nietzsche percebe que o pensamento lógico surgiu do ilógico, e que a partir
disso à questão do fundamento do conhecimento torna-se um problema, no sentido
de que a base do lógico é ilógica, tendo em vista que não há nada igual a nada,
idêntico; ele nos adverte que essas noções lógicas como, por exemplo, o
conceito de identidade, surgiu para os homens agirem no mundo de maneira
prática, e não para conhecer as coisas em si mesmas. Desta forma, para
Nietzsche o conhecimento tem um contexto natural, social e convencional, e a
objetividade deve ser considerada uma função prática da subjetividade.
No aforismo 112 da Gaia Ciência,
o princípio de causalidade recebe uma abordagem influenciada por David Hume;
Nietzsche, coloca a sustentabilidade da causalidade em questão, a partir da
consideração de que as percepções habituais dos fenômenos não trazem em si
quaisquer garantias quanto à previsão de que eles voltarão a se repetir. O
cerne da crítica reside em que não há uma estrutura causal subjacente à
realidade, mas apenas a constatação, reforçada pelo costume, de uma sequência
espaço-temporal que não tem nada de necessário, e daí a tarefa inútil da
ambição filosófica de explicar de modo definitivo, o funcionamento do mundo,
pois apenas:
“Um intelecto que visse causa e
efeito como continuum, e não, à nossa maneira, como arbitrário esfacelamento e
divisão, que enxergasse o fluxo do acontecer — rejeitaria a noção de causa e
efeito e negaria qualquer condicional idade” (Nietzsche F.W. A Gaia Ciência-Ed.
Cia das Letras).
Assim, fica claro que para ele
não há um determinismo entre causa e efeito, desta forma, a questão do
fundamento torna-se problemática, porque é contingente e antinômica. No aforismo
344 da Gaia Ciência, Nietzsche observa que no fundamento da ciência não há
nenhuma garantia de uma verdade primeira, não há fundamento seguro para se
afirmar que a verdade seja melhor que a inverdade, segundo ele, é de uma
concepção prática que surge a convicção inconteste da necessidade de verdade
que vem como base da ciência, desta forma, ela também ocasiona um dualismo
implícito, uma cisão entre dois mundos, onde de um lado temos a verdade e do
outro a falsidade mantendo-se na dualidade platônica, negando o mundo das
aparências. A ciência seria para Nietzsche uma sombra da morte de Deus, uma
nova devoção que recoloca a divisão da realidade, pois, segundo Nietzsche, há
uma relação entre a racionalidade filosófica socrático-platônica e a
racionalidade moderna, que com sua “vontade de verdade” funda a ciência, que é
apenas “uma crença forte”. Não há ciência sem a hipótese metafísica de que a
verdade é superior à falsidade.
Na seção do Crepúsculo dos
ídolos: A “razão” na filosofia, Nietzsche faz uma crítica radical ao conceito
tradicional de razão, percebendo que toda a filosofia clássica desvalorizou a
sensibilidade como uma ilusão enganadora, e que a razão concebida como inata,
como um a priori, negando todos os seus aspectos instintivos e sensíveis; desta
forma ele deduz que “A razão” é a causa de nós falsearmos o testemunho dos
sentidos” (Nietzsche F.W. C.I. Pg.36-Ed. Guimarães) por querer afirmar a
verdade universal dos conceitos lógicos como unidade, “coisidade”, substância,
etc., ou seja, por tentar igualar o que não pode ser igualado. A história da
razão foi, desta maneira, uma luta contra os instintos, contra a sensibilidade,
não percebendo que para determinar a “verdade” ela precisa dos instintos e da
sensibilidade, e o sentido da “verdade” em Nietzsche se concebe pela superação
da racionalidade clássica que escapou das crenças, mas não na crença da verdade
em si.
Enfim, para Nietzsche não basta
que o acontecimento maior da modernidade que foi a “morte de Deus”, seja
suficiente para superar o niilismo (sua decorrência); é preciso acabar de uma
vez com todas como a Moral, com a Moral entendida como oposição entre sensível
e inteligível, com a Moral não natural, para instaurar seu projeto de
“transvaloração de todos os valores”. Desta forma, a grande tarefa do
pensamento nietzschiano consistirá em procurar estabelecer valores não
fundamentados em ratificações transcendentes, puramente inteligíveis. O que ele
pretende instaurar é uma luta contra todos os valores atualmente aceitos sem
questionamento, o que não se faz pela simples reformulação deles, mas sim pela
transmutação de todos os valores estabelecidos. É dentro desta perspectiva que
ele parte para a verdadeira crítica, através da introdução na filosofia dos
conceitos de sentido e valor, empreendendo no dizer de Deleuze: “a verdadeira
crítica que não foi efetuada por Kant”.
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