O pensamento de Nietzsche se caracteriza, fundamentalmente, por elaborar uma crítica radical à filosofia, em sua base metafísica, na tentativa de superá-la. Para ele, foi Sócrates o responsável pela divisão no pensamento, entre mundo real e o mundo aparente sendo o verdadeiro fundador da metafísica ao postular um além-mundo inteligível onde, o mundo efetivo , o real, foi considerado como aparência, implicando em sua desvalorização. Em seu escrito, “Humano, demasiado Humano", Nietzsche afirmou que toda metafísica poderia ser definida como:"(...) a ciência que trata dos erros fundamentais do homem, mas como se fossem verdades fundamentais” (NIETZSCHE; HDH; pg.28CiadasLetras-Trad. Paulo César Souza).
A metafísica, ao postular um
além-mundo inteligível que seria o fundamento do real, ou seja, do mundo efetivo,
faz nela uma bifurcação, e isso implica uma dicotomia que conduz o pensamento
filosófico na tentativa de conhecer a essência das coisas, o mundo como é em si
mesmo, ou seja, conhecer e corrigir o Ser "(...)aquela inabalável fé de
que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais
profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas
inclusive de corrigi-lo"(NIETZSCHE;NT;Cia das Letras;Trad. J. Guinsburg).
Tendo em vista que a “substancialização” ou “essencialização” do real aponta
para a direção de uma verdade fixa, permanente, imutável,eterna,universal,e por
conseguinte, à procura de um fundamento que seria a origem ideal e o
significado do mundo.
Assim, na obra que inicia sua
maturidade intelectual, a partir de "Humano demasiado humano", a
tarefa do pensamento nietzschiano consistirá na eliminação de qualquer ideia de
um fundamento metafísico, transcendente, e de qualquer componente que postule
um além-mundo inteligível na elucidação dos juízos de valoração morais. A
moral, a partir de "Humano demasiado humano" ,passará a ser concebida
como uma criação totalmente humana e, portanto, uma crítica em sua base passará
a ser justificada, pois, a partir do momento da negação de todo e qualquer
componente transcendente, a gênese dos juízos de valoração morais passará a
ser, "Humana ,demasiada humana"."(...)Onde vocês veem coisas
ideais, eu vejo - coisas humanas,ah, somente coisas demasiadas
humanas!”(NIETZSCHE; EH;pg.72 Trad. Paulo C. Souza, Cia das Letras).A crítica
do pensamento de Nietzsche a moral e a metafísica têm como causa o fato de que
toda a tradição filosófica ocidental após Sócrates, ter sido fundamentada
radicalmente no primado da consciência, gerando desta forma, uma filosofia do
sujeito e da representação. "Por longo período o pensamento consciente foi
tido como o pensamento em
absoluto"(NIETZSCHE;GC;§333,pg.221,Trad.PauloC.Souza,Cia das Letras).
Assim, podemos afirmar que a consciência foi concebida como o recinto por
excelência do pensamento filosófico, até a crítica nietzschiana abalar tal
concepção, ou melhor, a concepção de que o conceito de consciência esteve
sempre ligado intrinsecamente com o próprio pensamento, havendo uma identidade
entre eles. Para Nietzsche “a consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão
da necessidade de comunicação” (NIETZSCHE; G.C.354; pg.248-Trad. Paulo C.
Souza, Cia das Letras). Desta forma, Nietzsche observa que os seres vivos em confrontação,
por meio da luta com o meio ambiente, tiveram que adquirir órgãos capazes de
lhes assegurar a sobrevivência, a consciência seria um desses órgãos, e como
ele bem escreveu :“A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico
e, por conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte”
(NIETZSCHE; GC;§11, pg.62, Trad. Paulo C. Souza, Cia das Letras). Assim, fica
esclarecido que a consciência não é uma instância inata, a priori no ser
humano, como pensou toda a tradição filosófica, ela surgiu como um meio de
comunicação e o que se dá ao nível da consciência é apenas o mais superficial e
encobre a atividade maior que é a inconsciente “apenas começa a raiar para nós
a verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte de
maneira inconsciente” (NIETZSCHE;GC;§333, pg.221, Trad. Paulo C. Souza, Cia das
Letras).Na modernidade, com o advento da filosofia de Descartes, houve uma
preponderância do conceito de consciência como res cogitans e, assim ela passou
a ser a condição sine qua non para todo filosofar. Ora, se Descartes, ao
“descobrir” o cogito, fez uma retomada de uma nova maneira, através de um longo
percurso de transposições de concepções tais como: A ideia, Motor Imóvel,
Substância, Deus etc. ele continuou segundo Nietzsche, preso à dicotomia
substancial que foi instaurada pelo Platonismo. Para Nietzsche ,espírito e
corpo não constituem unidades distintas entre si, mas estão totalmente e
intrinsecamente relacionadas. O eu consciente, que foi considerado pela
filosofia como o núcleo onipresente,autopensante da vida, passa , após a
crítica demolidora de Nietzsche , a ser considerado como uma “pequena razão”
,tornando-se instrumento da “grande razão” ,ou seja, das funções orgânicas que
permitem ao ser humano conservar-se e expandir suas forças. Desta forma, para
Nietzsche o pensamento não pode ser confundido com a consciência, muito pelo
contrário ele ultrapassa a ideia de consciência de toda a tradição filosófica.
Nietzsche percebe que atrás do conceito de consciência está a noção de um
“sujeito", de um "eu" e para Nietzsche a identificação do
sujeito com a razão é uma “ilusão”, uma “ficção”, “um artigo de fé", enquanto fundamento da verdade através da
linguagem é um" jogo de forças". "Não existe um Ser por trás do agir,
a ação é tudo".
"Pois assim como o povo
distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito
de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as
expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato
indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe tal substrato;
não existe "ser" por trás do fazer, do atuar, do devir; “o agente
" é uma ficção acrescentada a ação- a ação é tudo."(NIETZSCHE
;GM;Pg.36,Trad. Paulo C.SOUZA,Cia das Letras)
Influenciado por Schopenhauer e Spinoza,
Nietzsche toma o corpo como fio condutor, e desta forma inverte o pensamento de
toda uma tradição idealista, que sempre privilegiou a consciência, a alma, como
instrumento para o saber; seu objetivo consiste em romper com o dualismo
mente/corpo que predominou em toda a história da filosofia , para estabelecer o
corpo como uma “grande razão”. “E frequentemente me perguntei se até hoje a
filosofia, de um modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e
uma má-compreensão do corpo” (NIETZSCHE;GC; §2, pg. 12 –trad. Paulo C. Souza,
Cia das Letras). A concepção que Nietzsche tem sobre o corpo, é como sendo uma
sede de uma multiplicidade de impulsos hierarquicamente organizados, de modo a
formar um todo orgânico, onde não há um sujeito racional que comande todas as
suas funções, tendo em vista a complexidade do dinamismo corporal. Ou seja,
para ele seria impossível a um único órgão manter um controle total sobre o
organismo. O corpo seria a “grande razão”, a consciência é caracterizada como
um instrumento, como a “pequena razão”. “Instrumento de teu corpo é, também a
tua pequena razão meu irmão, à qual chamas “espírito”, pequeno instrumento e
brinquedo da tua grande razão” (NIETZSCHE;Z;Dos desprezadores do corpo, pg. 51,
Trad. Mário da Silva, Civ. Brasileira-1977).Desta forma, fica claro que em
contraposição ao dualismo mente/corpo, Nietzsche entende o corpo como uma
multiplicidade de Vontades de Potência, ou seja, o corpo como uma grande razão representando
uma síntese mais complexa de que a abstrata ideia de uma unidade representada
pelo “eu”. “Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um
soberano poderoso, um sábio desconhecido - e chama-se o ser próprio. Mora no
teu corpo, é o teu corpo”.(NIETZSCHE ;Z ; Dos desprezadores do corpo, pg. 51 –
Trad. Mário da Silva- Ed. Civ. Brasileira, (1977).
A metafísica é compreendida por
Nietzsche ,de uma maneira fragmentada e hierarquizada entre dois mundos: o
mundo inteligível, "superior", verdadeiro e o outro, o mundo
aparente, sensível, "inferior"; inter-relacionado com o problema
dicotômico espírito/corpo, herança Platônica que funcionava como fundamento do
mundo sensível. Com a remissão nietzschiana ao corpo, aos afetos, aos sentimentos, aos instintos, à Vontade de
Potência; põe em xeque, as noções cartesianas, herança do Platonismo, tais como:
substância, unidade, permanência, eu; porque na filosofia tradicional, o homem
através do uso da razão, da consciência, foi concebido como critério para
avaliar os valores, mas para Nietzsche é justamente o oposto. O homem não é o
critério “o homem é algo que deve ser superado” e sim, a Vida, a vida
compreendida como Vontade de Potência, é que estratifica a criação dos valores,
contudo não de maneira fundante. Sempre de maneira perspectivista, que cria
constantemente e incessantemente novos horizontes de significação, em um jogo
que não para, visando a afirmação cada vez mais vigorosa das relações de força
com a vida.
Ao postular um eu que seja o
aspecto fundante, a metafísica criou dicotomias insolúveis, com as quais
,pretendeu explicar os fenômenos do mundo, daí a afirmação de Nietzsche “A
crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores”
(NIETZSCHE;BM;pg.10;trad.Paulo Cezar Souza; Cia das Letras) que vem abalar a fundamentação de tal procedimento,
pois, problematizar a noção de eu, de consciência, de razão, implica deixar
para trás, tanto a unidade quanto sua oposição, a pluralidade entendida pelos
metafísicos como oposições. O corpo criador está num horizonte isento de
preocupações fundantes ou sistemáticas “(...)desconfio dos sistemáticos e me
afasto de seus caminhos. A vontade de sistema é uma falta de retidão.”
(NIETZSCHE; CI;pg. 13;Trad. Marco A. Casanova-Ed. Relume Dumará).
Quando Nietzsche emprega o corpo
como fio condutor para fazer oposição ao idealismo, que coloca a crença
platônica do corpo com “prisão da alma” vista no diálogo Fédon ,levando desse
modo uma relevável consideração aos sentidos, instintos, afetos como meio das
relações de poder que estão sempre em movimento, critica ,de forma incisiva
todos os idealismos da tradição filosófica embasados na postulação de um mundo suprassensível,
pois, para Nietzsche o corpo é um fenômeno muito mais evidente do que a fé na
suposição de um "eu", de uma alma, de um espírito. O uso do corpo
como fio condutor proposto por Nietzsche para fazer oposição a toda herança
filosófica ocidental socrático-platônica, faz com que os sentidos, os
instintos, os afetos obtenham um TOPOS privilegiado na filosofia, fazendo com
que todas as criações de valores tenham um fundamento corporal, pois eles
afirmam o corpo e a terra “(...) permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos
que vos falam de esperanças ultraterrenas” (NIETZSCHE;Z;pg. 30; Trad. Mário da
Silva, Ed. Civ. Brasileira 1977). A tentativa de transvaloração dos valores
entra em cena, com a colocação do corpo como “um soberano poderoso, um sábio
desconhecido” e assim, inverte o primado da consciência instalado por Platão e,
levado ao ápice com Descartes,com o a concepção do cogito,como instância
reveladora da verdade. Todavia, deve-se ficar esclarecido que Nietzsche não
pretende inverter a dicotomia alma/corpo, para corpo/alma, permutando as
estimativas de valorações, para ele o corpo é uma “grande razão” uma
multiplicidade de Vontades de Potência, sendo concebido como em um inexaurível
campo de lutas , e um "jogo de forças " entre os diversos instintos
ou impulsos, numa busca para obter preponderância sobre instintos mais fracos,
da vitória que nunca cessa, onde os sentimentos, os instintos, os desejos, os
pensamentos estão inter-relacionados, não constituindo, desta forma, atividades
autônomas. As atividades do corpo funcionam como meios de expressão, sintomas
de crescimento ou declínio da Vontade de Potência, estando em relações
agonísticas múltiplas que nele se consumam sem cessar.
Fizemos esse percurso , apenas
para mostrar que a hipervalorizarão do conhecimento racional efetuado por
Sócrates, culminou para Nietzsche na decadência da cultura. Agora, voltaremos a
questão do conceito de consciência e de razão, para mostrar a crítica que
Nietzsche fez à moral e a metafísica, pois para ele, toda filosofia ocidental
após Platão é uma filosofia Moral, haja vista, a oposição entre sensível e inteligível.
Em Humano, demasiado humano, Nietzsche inicia sua crítica as interpretações
metafísicas transcendentes que foram alicerçadas na postulação de um saber em
si, de um bem em si, ou seja, ele questiona a pretensão transcendente na
formulação desses conceitos, o essencialismo, fruto do platonismo que se põe
além do mundo da experiência e da vida; e para tal, indica que os conceitos
metafísicos têm sua gênese na história humana, não havendo como ser considerada
a possibilidade de eles provirem de uma essência transcendente, que
distinguiria o homem dos outros animais. Desse modo, ele mostra o
condicionamento das noções metafísicas que foram consideradas incondicionais e
atemporais. " Já a filosofia histórica, que não se pode mais conceber como
distinta da ciência natural, o mais novo dos métodos filosóficos, constatou, em
certos casos(e provavelmente chegará ao mesmo resultado em todos eles), que não
há opostos, salvo no exagero habitual da concepção popular ou metafísica, e que
na base dessa contraposição está um erro da razão" (NIETZSCHE;HDH;pg.15;
Cia das Letras) Para o filósofo da Alta Engadina,a consciência tem em sua
formação ,componentes históricos,sociais,psicológicos, e assim chega-se à
conclusão que o mundo não é mais "nada" do que o produto de
representações, que em nada correspondem ao"mundo efetivo",ao real.
Através do uso da consciência pela linguagem, os homens pensaram que tinham
acesso direto a esse mundo "(...) o
criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas
denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com palavras o supremo saber das
coisas"(NIETZSCHE;HDH;pg.21, Cia das Letras,Trad. P.C. Souza).
Dessa maneira, vimos que os
conceitos tais como: consciência e seus correlatos: "alma" e
"espírito", foram vinculados a tradição metafísica , que por sua vez
destacaram uma "essência" que não é humana , estando ligada a uma
esfera transcendente.
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